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Aborto: uma questão de saúde pública, não religiosa ou de gênero

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O debate sobre a descriminalização e/ou legalização do aborto tem tomado as ruas e as redes sociais, não só na América Latina como no mundo inteiro. Recentemente a Irlanda aprovou com 66,4% de votos, através de um referendo popular, a legalização do aborto, revogando a oitava emenda de sua constituição. O aborto é agora permitido em todo solo irlandês até a 12ª semana de gestação, e em caso de risco para a saúde da mulher, e anormalidade fetal, até a 23ª semana. Os únicos países europeus que continuam proibindo a interrupção da gravidez são Malta e Polônia.

Na América Latina o quadro é bem diferente, muitos países permitem o aborto em caso de risco para a saúde física da mulher, estupro e deformidade severa no feto. No entanto, poucos são os que legalizaram o aborto em sua totalidade, apenas Cuba, Guiana Francesa, Guiana, Porto Rico e Uruguai o fazem. Na Colômbia, o aborto não é legalizado, contudo, é permitido em casos de risco para a saúde física e mental da mulher. Essa regra, na prática, tornou o aborto legal, já que consideram que a mulher sendo obrigada a continuar com uma gestação que não é de sua vontade está sendo exposta ao sofrimento psicológico.

No Brasil, de acordo com os artigos 124, 125 e 126 do Código Penal, o aborto é considerado crime contra a vida, com pena prevista de um a três anos, caso o procedimento tenha sido provocado pela gestante, ou com seu consentimento. O aborto provocado por terceiros, com o consentimento da gestante, tem pena prevista de um a quatro anos, e quando a gestante é menor de 14 anos, ela é considerada incapaz, então a pena passa a ser de três a dez anos para os terceiros. As únicas exceções ocorrem quando há risco à vida da mãe, causado pela gravidez, quando a gravidez é resultante de um estupro e se o feto não possuir cérebro.

O debate se faz necessário e os dados são alarmantes: anualmente ocorre 1 milhão de abortos clandestinos e a cada dois dias uma mulher morre em consequência de um aborto inseguro.

Segundo o DataSUS, 1.572 mulheres morreram em decorrência de aborto no Brasil entre 1996 e 2013. Temos uma taxa anual de 250 mil internações no SUS (Sistema Único de Saúde) e R$ 142 milhões gastos em virtude de complicações pós-aborto. Uma pesquisa da Organização Mundial da Saúde e do Instituto Guttmacher (EUA), publicada em 2016, demonstrou que nos países em que o aborto é proibido o número de procedimentos não é menor do que em países onde ele é legalizado. A pesquisa demonstra ainda que quanto mais rígida é a legislação, maior a quantidade de abortos inseguros: 97% dos abortos clandestinos ocorrem em países subdesenvolvidos, desses, 75% ocorrem na América Latina. Em contrapartida, o aborto é legalizado em 80% dos países desenvolvidos.

Em termos de comparação, em 2007, Portugal legalizou o aborto para gestações de até dez semanas. Dez anos depois, uma pesquisa da ONG Associação para o Planejamento da Família mostrou que o número de abortos caiu no país e as mortes decorrentes da prática são quase inexistentes. Na década de 1970, estima-se que eram realizados mais de 100 mil abortos ilegais em Portugal, sendo que 2% deles resultavam em morte, enquanto dados de 2008, um ano após a legalização, o país registrou cerca de 18 mil abortos. Em 2015 foram 10% menos abortos do que em 2008. Esses são dados relevantes para a sociedade, e esse deve ser a discussão em debates sobre o tema.

O debate não pode ter viés religioso. Pode não parecer, mas o Estado é laico, e assim deve ser, a não ser que você esteja lendo esse artigo de algum lugar na Idade Média. Cada um pode seguir o dogma que quiser e condenar qualquer prática, mas a sociedade precisa evoluir independente disso. Pregam educação religiosa (de uma única religião, que fique claro), e condenam educação sexual nas escolas, proibindo posteriormente o aborto, por serem a favor da vida e da família, ao mesmo tempo em que martelam na tese do “bandido bom é bandido morto”. A hipocrisia também aparece em números, as mulheres que abortam no Brasil são, em geral, casadas, já têm filhos e 88% delas se declaram cristãs: sendo católicas, evangélicas, protestantes ou espíritas.

A discussão não é se você é a favor ou contra o aborto, a favor ou contra a vida. Eu sou contra a realização na maioria absoluta dos casos, jamais pediria para que uma mulher realizasse um aborto, e nem aceitaria que ela o fizesse por escolha própria. Brigaria até o último instante pelo nascimento do bebê, somos e devemos ser responsáveis pelos nossos atos. Existem muitos métodos contraceptivos e precisamos educar a sociedade nesse sentido, desde o ensino básico, até porque a gravidez não é o único risco que as pessoas correm mantendo relações sexuais desprotegidas. O número de doenças sexualmente transmissíveis tem aumentado, ao mesmo tempo em que as propagandas diminuem na TV, e o medo da AIDS, constante na década de 1980, parece ter desaparecido.

Considero ainda, que o aborto não traz somente danos físicos à mulher, como também psicológicos, uma marca que levam para o resto de suas vidas. Entretanto, o fato de eu ser contra o aborto, não me faz cego à necessidade da legalização e principalmente da descriminalização do mesmo.

Muitas discussões caem também no debate pouco lúcido e produtivo sobre gênero. A discussão infantil entre homens e mulheres, a nova “guerra dos sexos”, toma as redes sociais e o discurso político, quando deveríamos focar na questão de saúde pública. Alguns acreditam que eu não deveria opinar sobre o tema, já que sou (e me identifico como) do gênero masculino. Como se isso me excluísse da sociedade, e da relação com o bebê que a mulher carrega no ventre. Com todo o respeito aos que acreditam na questão de “lugar de fala”, mas quem fala sozinho só é ouvido pelos seus, o debate não ultrapassa as fronteiras daqueles que pensam como você, e se queremos mudar a sociedade, todos devem participar da discussão.

Semana passada, o senado argentino decidiu por barrar a lei pró aborto no país. Foram grandes as manifestações e conflitos pelas ruas. Por aqui, nas redes sociais, o debate muitas vezes se resume a “homens decidindo sobre o que a mulher faz com o seu corpo”, como se realmente o debate se limitasse ao corpo feminino. O Senado argentino possui 72 senadores, 30 desses são mulheres. Entre os homens, 24 votaram contra o aborto e 17 votaram a favor, com uma abstenção.

Entre as mulheres, uma abstenção e uma ausência, 14 a favor e 14 contra. Advinha o que aconteceria se a maioria absoluta das senadoras argentinas votassem a favor? Pois é, quem definiu de fato a questão foram as mulheres, que nem preciso dizer, elegem homens em sua maioria, é só dar uma olhada rápida em nossa câmara dos deputados e no nosso senado, ainda que as mulheres representem 52% do eleitorado brasileiro.

Precisamos primeiro descriminalizar o aborto e sermos mais flexíveis em sua legalização, não é só uma questão de opinião, mas de dados relevantes que apontam nesse sentido. Depois disso, precisaremos também debater como isso será feito, e o papel de homens e mulheres nisso tudo.

Como ficará a questão caso a mulher decida pelo o aborto e o pai da criança não? Caberia somente a ela a decisão, já que o bebê é gerado em seu corpo? Seria opcional as obrigações do homem como pai?

Em uma gravidez, o homem é somente o fornecedor de espermatozoides? Se assim o for, poderia ele se recusar a assumir a criança legalmente?

Os homens continuariam sendo obrigados a assumir para toda uma vida uma gravidez indesejada e a mulher poderia interrompê-la sempre que desejasse?

Isso não me parece justo. Por isso o debate é importante, reflita sobre tudo que foi escrito e se quiser debater, terei um enorme prazer em fazê-lo através dos comentários.

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Sobre Rodrigo Barros

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Empreendedor e escritor, Rodrigo Barros é bacharel em Biblioteconomia e em Sistemas de Informação, com pós-graduação em Gerência de Projetos e MBA em Gestão de Marketing. Fundador e editor chefe na Cartola Editora.

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