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A Intervenção Militar no Rio de Janeiro e a pulga atrás da orelha

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Eu nasci durante a ditadura militar, entretanto, graças a Deus, não tenho lembranças desse período sombrio da nossa história. A primeira vez em que vi a cidade do Rio de Janeiro tomada por militares foi em 1992, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, conhecida como Eco 92. Eu tinha por volta de 15 anos e vivi a falsa sensação de segurança. Não havia moradores de rua, tinha militares em cada passarela de acesso ao aterro do Flamengo e ainda que eu não tivesse a menor ideia do que estava acontecendo, acreditava que ali se encontrava a solução para uma cidade dominada por traficantes.

De lá pra cá, basicamente todos os governos estaduais fizeram uso do apoio militar para o combate da violência. Em 1994, o então governador Nilo Batista entregou o comando do combate ao crime organizado ao governo federal. Seis meses depois, Marcelo Alencar, deflagrou a operação Rio II, em que 20 mil homens foram mobilizados para atuar no Estado. O objetivo era a contenção da onda de sequestros e o combate ao crime organizado. Em 1999, durante o governo de Anthony Garotinho, montou-se um esquema de segurança para a proteção dos chefes de Estado que participaram da reunião de países da América Latina, do Caribe e da União Europeia. Apesar do contingente de mais de 3.500 soldados do exército e mais de 8 mil policiais espalhados pelos locais onde ocorria o evento, o número de homicídios e roubo de carros não diminuiu.

Em 2002, Benedita da Silva recebeu apoio militar para garantir a segurança nas ruas durante as eleições. No ano seguinte, após uma onda de ataques de traficantes que incendiaram ônibus em diversos bairros e ordenaram o fechamento de comércios por cinco dias, a governadora Rosinha Garotinho recebeu o apoio de três mil soldados para patrulhar as ruas da cidade durante o carnaval. Os índices de criminalidade não diminuíram, ao contrário, aumentaram se comparados aos do ano anterior. Outros grandes eventos também contaram com o apoio das forças armadas, como a Jornada Mundial da Juventude, em 2013, que teve a presença do Papa Francisco, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

Em julho do 2017, o presidente Michel Temer assinou um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que autorizava a atuação de tropas das Forças Armadas na segurança pública do Rio de Janeiro, até o final do ano, podendo ser postergada para dezembro de 2018. Entre os anos de 2010 e 2017, foram realizadas 29 ações de GLO, segundo informações divulgadas pelo Ministério da Defesa. Apesar de todo apoio militar ao longo desses vinte e seis anos citados no texto, o índice de criminalidade no Rio de Janeiro nunca foi controlado, tampouco o tráfico de drogas.

Curiosamente, assim como acontece na aparição de black blocks em manifestações, as praias da zona sul do Rio de Janeiro sofrem com ataques de arrastões em momentos propícios, normalmente antecedendo alguma ação importante a ser tomada na cidade. Enquanto bandidos atacavam os pontos chaves da cidade durante o carnaval, sendo massivamente divulgado nos telejornais, o governador Luiz Fernando Pezão alegava falha de planejamento na segurança carioca e o prefeito Marcelo Crivella viajava pela Europa. Estava montado o cenário para que outros atores pudessem também atuar sob o brilho dos holofotes. Em uma ação inédita desde a ditadura militar, o presidente Michel Temer assinou um decreto de intervenção federal na segurança pública no estado do Rio de Janeiro, aprovado posteriormente na câmara dos deputados e no senado. Com isso, o general do Exército Walter Souza Braga Netto, do Comando Militar do Leste, tornou-se o interventor no estado, assumindo até o dia 31 de dezembro de 2018 a responsabilidade do comando da Secretaria de Segurança, Polícias Civil e Militar, Corpo de Bombeiros e do sistema carcerário no estado do Rio de Janeiro.

Vale ressaltar que as forças armadas já atuavam no Rio de Janeiro através do decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Segundo dados do 11º Anuário de Segurança Pública, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e divulgados em novembro de 2017, o Rio de Janeiro ocupa a 10ª posição no ranking de violência por estado, ficando atrás de Sergipe, Rio Grande do Norte, Alagoas, Pará, Amapá, Pernambuco, Bahia, Goiás e Ceará. Então cabe o questionamento: por que esses outros estados não sofreram intervenção federal antes do Rio de Janeiro?

 

 

O Comando Vermelho, descende da Falange Vermelha, e principal facção criminosa do Rio de Janeiro, com ramificações em vários estados do País, surgiu durante a ditadura militar. Considerando o histórico de fracasso no combate ao crime organizado, sinto-me à vontade em afirmar que as forças armadas não dispõem das capacidades logísticas e táticas para atender às necessidades de policiamento no ambiente urbano, quiçá no controle de nossas fronteiras, já que apesar do investimento de mais de R$ 1 bilhão desde 2012 no Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), projetado pelo Exército para integrar radares, sensores, satélites e outros instrumentos de monitoramento e transmissão de dados no combate à entrada de armas e drogas, as forças armadas só conseguem monitorar 4% da fronteira do País, segundo informações divulgadas pelo exército no início de 2017.

Se por si só os dados não fossem alarmantes, o general do Exército Walter Souza Braga Netto afirmou em sua primeira coletiva como interventor no Rio de Janeiro que não existe planejamento de ocupação permanente de favelas e que as operações continuarão sendo pontuais. Se não existe planejamento, se as operações seguirão sendo pontuais e a sistemática da segurança não será alterada, qual a razão da intervenção?

Enquanto a justiça federal determinou recentemente a devolução do helicóptero apreendido com 443 quilos de pasta base de cocaína, a Gustavo Perrella, filho do senador Zezé Perrella e secretário nacional de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor, no governo Temer, crianças estão tendo suas mochilas revistadas por militares nas comunidades do Rio de Janeiro sem a presença do conselho tutelar, uma ação inconstitucional segundo o Conselho Nacional de Direitos Humanos. O caso da apreensão do helicóptero é emblemático, já que até hoje ninguém está preso e os donos do helicóptero sequer responderam judicialmente.

Os primeiros efeitos da intervenção militar no Rio de Janeiro começam a ser observados. O exército vem fichando moradores de três comunidades, impedindo a cobertura da imprensa, após a Folha de São Paulo divulgar imagens da ação. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro e a seccional estadual da Ordem dos Advogados do Brasil condenaram a atitude, afirmando que a abordagem é inconstitucional e viola direitos fundamentais do cidadão, já que a abordagem pessoal por qualquer agente de segurança só é permitida quando há razões concretas e objetivas para a suspeita de que o indivíduo esteja portando bem ilícito ou praticando algum delito, e o fato de se morar em uma comunidade pobre não é razão suficiente para este tipo de suspeita. A lei também estabelece que nenhum cidadão seja submetido à identificação criminal se estiver portando a devida documentação civil.

Em um país com histórico de arbitrariedades, torturas e golpes de estado praticados por militares, se faz necessária uma análise crítica dessas ações, ainda mais após a declaração do interventor militar de que o Rio de Janeiro é um laboratório para o Brasil. Eu não sei vocês, mas eu estou com a pulga atrás da orelha.

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Sobre Rodrigo Barros

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Empreendedor e escritor, Rodrigo Barros é bacharel em Biblioteconomia e em Sistemas de Informação, com pós-graduação em Gerência de Projetos e MBA em Gestão de Marketing. Fundador e editor chefe na Cartola Editora.

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