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Intolerância

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Chovia forte na noite daquela quinta-feira. O tempo afastou grande parte dos fiéis que compareciam habitualmente para ouvir as pregações na igreja. Ainda assim, era possível escutar pelas ruas os clamores dos que lá estavam orando pelos seus.

O bispo Jair vociferava a favor da família tradicional. Sob aplausos e gritos de “aleluia. Defendia que um casal só pode ser formado por um homem e por uma mulher, como Deus havia determinado. Qualquer variação disso deveria ser considerada uma “aberração” e prontamente combatida. Os membros da igreja não podiam permitir que a sua volta, o mundo tolerasse o imperfeito.

Jair foi uma criança pobre. Viveu em uma das muitas comunidades marginalizadas do Rio de Janeiro. Criado com muita luta pela mãe, viúva desde que ele tinha cinco anos, Dona Lourdes fez o possível para mantê-lo longe das drogas e das perdições do universo a sua volta. Desde muito jovem, frequentava a igreja, e naturalmente chegou ao ministério. Tornou-se uma celebridade entre os seus, era ouvido por centenas de pessoas.

Antes dos trinta anos, ajudou a formar no congresso uma bancada evangélica para lutar pelos direitos da família e do que considerava correto para a sociedade. Criticava católicos, budistas, kardecistas e umbandistas, focando principalmente na luta contra o aborto e contra o livre direito dos homossexuais.

Durante seu testemunho, apresentou à comunidade um novo membro da igreja. Marcos havia sido molestado pelo padrasto quando criança e expulso de casa na pré-adolescência, por apresentar tendências homossexuais. Nas ruas enveredou para o crime, se juntou ao tráfico, ganhou dinheiro e tomou hormônios, se tornando a “Rainha das drogas” no Rio de Janeiro.

Apesar da condição de travesti, conseguiu respeito de todos os traficantes da cidade, devido ao domínio territorial, conquistado à base de muita violência e pouca tolerância as falhas de seus comandados.  Após a ocupação de uma comunidade por parte do BOPE, a “rainha” acabou detida. No presídio, virou notícia após se casar com outro detento. Tudo mudou após o assassinato de seu companheiro por um grupo rival. Buscando conforto entre os detentos, passou a integrar um grupo de orações, e com o tempo, deixou de ser a “Rainha” e voltou a ser chamado pelo nome.

Marcos voltou à sociedade após cumprir parte da pena em regime fechado. Em liberdade condicional, se juntou à igreja para seguir sua missão, defendendo que a homossexualidade é uma condição, uma escolha, e que ele agora estava curado. Era tudo que o pastor Jair precisava para embasar suas teorias e incentivar a guerra contra os homossexuais. Escreveram juntos um livro que contava a trajetória do missionário, de travesti a pastor, um ex-gay, como o próprio se denominava. Ganharam os jornais e todas as mídias falavam sobre o assunto. A bancada evangélica dava apoio integral à causa, enquanto a bancada GLBTS combatia como podia as ações da dupla.

A atenção demasiada dada por Jair a Marcos acabou por gerar ciúme em muitos dos fiéis da igreja.  Antes de sua chegada, o bispo tinha tempo para acompanhar e orientar a todos os fiéis. A “causa” de Marcos tornou-se o principal motivo das pregações do líder religioso, seja na televisão, seja no culto. Egos inflados geraram as primeiras histórias contra o agora pastor Marcos. Durante os cultos, corriam comentários de que o novo membro apenas usava a igreja para ganhar dinheiro através de suas palestras e venda de livros, contudo, mantinha velada sua condição de homossexual. A aproximação entre os dois era visível, estavam sempre lado a lado, e muitos fiéis já acreditavam que Marcos poderia desviar Jair do caminho do que é correto, apresentando a ele, um universo novo que o afastaria da igreja.

Apesar de casado e pai de dois filhos, Jair sempre arrancou suspiro de suas fiéis, em especial de Beatriz, uma jovem da comunidade que dedicava toda a vida à igreja e principalmente, a cuidar do pastor. A dedicação e o amor platônico pelo líder religioso levou Beatriz a trabalhar em sua residência, cuidando de seus filhos e de sua casa. Sonhava com o dia em que poderia assumir o lugar de sua esposa. Para ela, desejar o que é do próximo, nesse caso, não era pecado.

Estava sempre atenta a tudo ao que ocorria, buscava brechas para aconselhar a esposa de Jair, incentivando intrigas e, colocando um contra o outro de forma quase imperceptível. A aproximação de Marcos criou um novo desafio. Ele era como um filho para Jair. Frequentava sua casa, dormia grande parte dos dias da semana no quarto de hóspedes, levava harmonia à família, mas Beatriz sempre estava com o pé atrás. Perdeu parte da atenção que a família lhe dava, e temia que a presença de Marcos influenciasse de forma negativa as crianças, seja pelo passado como travesti ou como traficante, o que para ela era a mesma coisa, não havia distinção entre ser bandido ou homossexual.

Se antes trabalhava dia após dia para separar Jair de sua esposa, agora o foco era separá-lo de seu mais novo escudeiro e, o desafio não seria tão grande com o passado do novo missionário. Em pouco tempo, todos já desconfiavam das intenções de Marcos e de sua aproximação repentina de Jair. Cochichavam durante os cultos e se entreolhavam de forma debochada quando havia qualquer testemunho de Marcos. O clima de harmonia na igreja não existia mais. Se todos estavam ali a favor da família tradicional, como aceitar entre eles um pervertido? Precisavam se livrar de Marcos, contudo, ele era a chave mestra nos planos políticos de Jair. Não seria algo simples.

Ao final do culto de domingo, apenas Beatriz permaneceu na igreja, para ajudar ao pastor a arrumar tudo. Como era de costume, Marcos também permaneceu para traçar as estratégias da semana, ao lado de Jair. Ela arrumava as coisas no salão principal, mas não se aproximava da sala de reuniões, nunca fora convidada para entrar, então, levantava entre os fiéis a dúvida sobre o que tanto faziam por lá. Mandava mensagens, avisando sobre o tempo em que permaneciam sozinhos, deixando a entender que era proibida sua entrada, e questionava o porquê, colocando no ar uma relação maior que a de amizade entre os dois.

A situação havia se tornado insustentável entre os membros da igreja. Todos pediam o afastamento de Marcos, mas Jair não dava importância, o que fomentava ainda mais a desconfiança entre os membros. Beatriz terminou o serviço e voltou para casa, deixando os dois conversando e incentivando a fofoca entre os fiéis, com mensagens trocadas pelo celular.

Era por volta da meia noite quando Marcos e Jair deixaram a igreja. Fecharam o templo como de costume e seguiram pelas vielas da comunidade a fim de chegar em casa e descansar. Conversavam normalmente quando foram abordados por cinco homens munidos de paus e pedras.

– A gente vai limpar essa porra dessa cidade, chega de tanto viado andando na nossa área. – Disse um deles antes de desferir o primeiro golpe no rosto de Marcos, que imediatamente foi ao chão. Jair tentou explicar que não eram gays, que eram da igreja, mas nada adiantou. Eles sabiam quem eles eram, frequentavam os cultos, estavam fazendo justamente aquilo que foram orientados a fazer. O pastor nunca pensou nas consequências de suas palavras contra os homossexuais.

Foram surrados até a morte por seus próprios fiéis. Aprenderam da pior forma possível que não há tolerância com a intolerância.

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Sobre Rodrigo Barros

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Empreendedor e escritor, Rodrigo Barros é bacharel em Biblioteconomia e em Sistemas de Informação, com pós-graduação em Gerência de Projetos e MBA em Gestão de Marketing. Fundador e editor chefe na Cartola Editora.

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