Kindle paperwhite: Prático como você

O sobrado da Rua Taylor

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Lembro-me da primeira vez que a vi. Eu estava feliz como há muito não ficava em minha vida. Era o dia de minha formatura, orgulho para meus pais, meus familiares e meus amigos. Eu sonhava em escrever para um grande jornal da capital, mantendo-me distante da mentalidade provinciana do interior.

Todos os sonhos se tornaram indiferentes no instante em que a vi. Seus olhos verdes, brilhando em minha direção, tiraram todo o sentido daquele evento. Eu não conseguia mais conversar com meus amigos ou agradecer aos elogios, sem me perder olhando fixamente para aquele rosto angelical. Seu nome era Helena, irmã de um grande amigo que também se formava naquela data, contudo, em outro curso. Fomos apresentados e passei o resto da noite ao seu lado. Na verdade, passaria o resto da vida, se ela assim desejasse. Para a minha sorte, ela desejou.

Casamo-nos meses depois, em uma ensolarada manhã de outono. Consegui um emprego no tradicional Jornal do Brasil, na antiga Av. Central, hoje chamada de Av. Brasil. Alugamos um imóvel modesto na Rua Taylor, próximo aos Arcos da Lapa. A região não era das melhores, mas era o que eu podia pagar com o salário que o jornal me oferecia. Montamos o apartamento de forma a tornar nosso lar extremamente confortável. O sobrado era grande, tínhamos dois andares para colocar móveis e decorações.

Devido a problemas familiares, o senhorio do sobrado resolveu colocá-lo a venda. Pedi ajuda aos meus pais e com as economias que havia feito, adquiri nossa casa de forma definitiva. Era eu agora o homem mais feliz do mundo. Em dois anos tudo estava perfeito. Meu sonho havia se realizado, morava na capital, trabalhava em um grande jornal e vivia ao lado da mulher da minha vida. Nada poderia dar errado.

As coisas começaram a mudar naquele inverno. Helena costumava fazer trabalhos voluntários junto à comunidade, tratando dos menos favorecidos. Normalmente crianças, idosos e enfermos. Em uma das noites que saiu para prestar assistência, retornou tossindo muito. Eu já havia reparado na perda de peso e em algumas noites mal dormidas, mas a tosse constante começou a chamar minha atenção. Ela dizia que era um resfriado qualquer, que o frio do inverno estava lhe fazendo mal, que já havia ido ao médico e que tudo ficaria bem.

Acordei naquela madrugada ouvindo-a gemer. Seu corpo pegava fogo e ela dizia frases sem nexo. Coloquei um termômetro junto ao seu corpo e fiquei muito preocupado quando vi que a febre ultrapassava os quarenta graus. A vesti com um sobretudo por cima da camisola e desci para pegar um táxi rumo ao hospital.

Foi diagnosticada com pneumonia crônica e os médicos aconselharam que ela ficasse internada aquela noite. Precisavam fazer a febre baixar. Adormeci na sala de espera, aguardando por mais notícias. Ao amanhecer, o médico de plantão veio me informar que o que ela tinha não era somente pneumonia. Após alguns testes com a saliva, detectaram que ela tinha tuberculose, e que seu pulmão já estava completamente tomado. Ela teria no máximo uma semana de vida. Chorei e pedi a Deus que o diagnóstico estivesse equivocado.

Assim que pude adentrar ao CTI, ela me contou que soube da doença tarde demais, e que tentou me poupar para pudéssemos passar os últimos dias de sua vida como um casal normal. Por algum motivo eu não havia sido contaminado, mesmo convivendo com ela diariamente. As noites seguintes foram de angústia e tristeza.

Seu enterro ocorreu em uma manhã de sábado, no Cemitério do Caju. A vida perdeu totalmente o sentido. Preferi o isolamento. Não mantive contato com os amigos, com os parentes ou com meus pais, preferi o isolamento. Limitei-me a trabalhar e voltar para casa, sem mudar um único móvel de lugar, tudo se manteve como era quando ela estava em casa.

Tornei-me recluso, tirando os dias de trabalho, só deixava o sobrado para frequentar a paróquia Nossa Senhora do Carmo. A única maneira de manter-me vivo era visitando a igreja, me confessando junto ao pároco e questionando a Deus, todos os dias, o que havia feito para merecer toda essa tristeza.

Quando estava em casa, limitava-me a sentar na poltrona junto à janela, esperando que em algum momento acordasse daquele pesadelo. Normalmente adormecia por ali, sentado, na van ilusão de que Helena pudesse a qualquer momento pegar em minha mão, levando-me para a cama.

Os anos se passaram e a cidade foi mudando. Os bondes não mais trafegavam pelas ruas, o Jornal do Brasil mudou-se para a Av. Brasil, próximo ao cais do porto. Vi o surgimento do metrô, da Internet, mas preferi manter-me longe de tudo, principalmente após a aposentadoria. Saia de casa somente para pagar algumas contas, ir ao mercado e visitar a paróquia. Dia a dia sentia meu corpo definhando, a idade avançando e esperava pelo instante em que poderia encontrar novamente a minha Helena.

Chovia de forma intensa aquela noite, a cidade dormia em silêncio. Com o temporal, nem os vagabundos saiam às ruas. Estava sentado em minha poltrona olhando os pingos na janela, mais uma noite de insônia. O relógio já marcava três e alguma coisa, quando ouvi um barulho no andar debaixo. Parecia que alguém forçava a entrada da porta principal. Olhei pela janela e não vi ninguém, desci as escadas perguntando quem estava por ali. Pedi que fosse embora. Eu não tinha nada, dinheiro, televisão ou aparelho celular, era somente um velho solitário.

Chegando ao primeiro andar, percebi que a porta estava fechada, mas o trinco não estava vedado, como eu costumava deixar. Um guarda chuva repousava junto à parede, e pegadas molhadas indicavam o caminho que o invasor havia feito até a cozinha. Corri até a gaveta e peguei uma faca, derrubando a gaveta ao chão, chamando a atenção de quem estivesse por ali. Olhei em todas as direções e nada vi. Percebi que as pegadas marcavam um novo caminho, agora pela escada. Quem estivesse por ali, estava agora no andar de cima. Acendi a luz do corredor e subi para verificar quem havia invadido minha casa. Nada encontrei, novamente reinava o silêncio. Tive medo. Durante todos esses anos, nunca passei por algo parecido.

Na manhã seguinte, o guarda chuva havia desaparecido e a luz do corredor, que eu havia deixado acesa, tinha se apagado. Como poderia isso ter acontecido sem que eu visse qualquer pessoa na casa? Fui até a igreja, rezei um pouco e retornei próximo ao anoitecer. Peguei um livro da estante, acendi a luminária e li até adormecer. Durante a madrugada voltei a acordar com um barulho estranho. Percebi a luminária apagada. Tremi da cabeça aos pés, desci até o primeiro andar, mas nada vi, até que ouvi o chuveiro do banheiro sendo ligado, como se alguém lá estivesse para o banho.

Novamente com uma faca em mãos, abri suavemente a porta e vi a cortina estava fechada, com a água caindo em abundância. Abri a cortina com rapidez e tudo foi ao chão, sabonete, xampu, barbeador e escova de dente, dando-me um susto que quase me leva a uma parada cardíaca, contudo, para minha surpresa, ninguém estava no banho. Fechei o chuveiro e corri para a poltrona, com a faca em mãos. Não havia ninguém pela casa, mas reparei as luzes se acendendo e depois se apagando em diversos pontos diferentes. Não consegui dormir, passei a noite em claro, apavorado com o que estava acontecendo.

Assim que a igreja se abriu, fui até lá fazer minhas orações. Ajoelhado próximo ao altar, percebi o pároco da comunidade rezando no confessionário. Sentei-me do lado inverso. Respirei por uns minutos tomando coragem para contar o que estava acontecendo, temia ser considerado louco pelo velho padre. Falei sobre as luzes, sobre os barulhos e tudo mais que ocorria durante as madrugadas naquele sobrado. Confessei-lhe meus medos e a certeza de que quem me visitava não era Helena, mas sim outra “coisa”, algo que não se intimidava com a minha presença, apenas aparecia e desaparecia, fazendo bagunça nos móveis e nos cômodos.

O pároco ouviu cada palavra em silêncio. Com o terço em mãos, parecia rezar enquanto ouvia minhas palavras. Não deu qualquer orientação, deixou o confessionário e adentrou a sacristia deixando-me ali, sozinho e sem qualquer auxílio.

Deixei a igreja sem saber por que o padre havia me abandonado. Depois de tantos anos de ajuda, amenizando minha tristeza com suas palavras, agora ignorava o meu temor. Estaria ele convencido da minha insanidade? Seria eu agora um velho louco que não merece o auxílio de uma santa alma?

Caminhei pela orla da Marina da Glória pensando em Helena. Se ela estivesse comigo, todas as minhas dores, meus medos, nada seriam. Ela me daria forças. De certo cuidaria de mim, ainda que eu estivesse enlouquecendo. Seria ela quem daria o apoio do qual precisava, mas eu não tinha mais ninguém.

Assim que voltei pra casa, percebi que a poltrona na qual me sentava junto à janela, não estava mais em seu lugar de costume. Ela se encontrava no primeiro andar. Senti um frio percorrendo a espinha. Eu sozinho não teria como carregar a poltrona novamente para seu lugar. Pela primeira vez em anos, entrei em nosso quarto. Desde o dia em que Helena se foi, tranquei o cômodo como estava e jamais voltei a dormir lá, mantive tudo intacto.

Para minha surpresa, nada mais estava como antes, o cômodo estava totalmente modificado, a cama e o armário ainda eram os mesmos, mas a decoração estava completamente mudada. Eu precisava de ajuda, mas os anos de isolamento levaram-me a uma vida solitária, sem um único amigo sequer. Todos os que eu conhecia já não estavam mais entre nós, meus tios, meus primos, meus pais, todos já haviam falecido.

Ajoelhei-me sob o crucifixo que ficava próximo a porta da sala e comecei minha oração. Pedi para que Deus me levasse, para que me tirasse o quanto antes daquele sofrimento. Se já não me bastasse a solidão e a tristeza, tinha agora também uma assustadora realidade.

Enquanto me encontrava em silêncio conversando com Deus, ainda que às vezes acreditasse que ele me tratava com a mesma indiferença que o pároco havia me tratado, voltei a ouvir a porta da sala se abrindo. Passos pelas escadas e eu novamente apavorado. Acendi todas as luzes da casa e percebia uma a uma se apagando, sem que ninguém apertasse o interruptor. Voltei a acender todas as lâmpadas, e novamente elas foram apagadas.

Em um ataque de pânico, subi as escadas derrubando tudo o que via pela frente, implorando, aos berros, que aquela entidade deixasse minha casa, que me permitisse viver os últimos anos de minha vida em paz. Eu passava as mãos pelos livros, jarros, telefone, levava tudo ao chão, quando ouvi um urro ensurdecedor, como se o que lá estivesse, tentasse me expulsar de minha própria casa. A porta da sala bateu com força e o que ali estava me deixou em silêncio. Eu não poderia passar o resto dos meus dias sendo atormentado daquele jeito, chorei e pedi mais uma vez que Deus me levasse.

Arrumei toda a bagunça que havia feito e coloquei as coisas novamente em seus lugares. Fazer algo para o tempo passar ajudava a manter o pouco de controle que me restava. Era a primeira vez que eu era assombrado durante o dia, normalmente o terror acontecia durante as madrugadas. Eu estava com medo. Medo do anoitecer, medo que tudo piorasse durante a noite. Dessa vez, eu ouvi a entidade berrando comigo, não era mais somente coisas mudando de lugar. Agora havia uma materialização. Eu temia pelo pior.

Diferente do que aconteceu nas últimas noites, nada ocorreu durante a madrugada. Peguei no sono ao amanhecer, com o coração aliviado. Eu precisava me mudar daquele sobrado, mas para onde poderia ir? Eu estava com medo, sempre fui um covarde, se tivesse nascido com coragem, já teria dado cabo de minha própria existência, antecipando o fim de minha tristeza. Deitei em minha cama, como não fazia desde a última noite em que passei com Helena, adormecendo em seguida.

Acordei com um barulho na fechadura da porta principal. O martírio parecia que iria começar novamente. Desci sem fazer barulhos dessa vez, e pude ver logo no hall de entrada o pároco da igreja. O que ele estava fazendo em minha casa? O padre estava em silêncio. Tirou do bolso uma fotografia antiga, pude perceber que era um retrato meu com Helena. O sacerdote olhou com certa ternura e colocou-o de volta em sua batina. Ele tinha um incenso em uma das mãos, balançando, enquanto movimentava a outra mão benzendo a residência com água benta. Senti um alívio no peito, ele finalmente havia ouvido minhas preces estava ali para me ajudar a me livrar daquele tormento.

Sem dizer uma única palavra, o pároco seguiu benzendo todos os cômodos, falando palavras em latim, que eu não era capaz de entender. Passou por mim como se eu não estivesse ali, ignorando-me como fizera na igreja, mas seguia benzendo o sobrado. Sentei-me na poltrona e esperei que ele terminasse com o segundo andar. Quando ele desceu as escadas, esperei por uma palavra de consolo. Ele nada disse mais uma vez. Sem se despedir, trancou a porta da sala e se foi. Fiquei intrigado com a situação, ainda que aliviado com a certeza de não mais ser importunado. Sempre fui um homem de fé, acreditei que tudo estaria resolvido a partir de agora.

Aproximei-me da janela e fiquei pensando no quanto eu merecia ter sido feliz naquele sobrado, mas tudo que ganhei foram as tristezas, as poucas lembranças e o vazio. Respirei fundo e senti uma lágrima percorrer o rosto. Ainda não entendia porque o pároco me ignorava. Se eu havia pedido ajuda e ele iria me ajudar, porque não disse que o faria? Aliás, porque não tocara a campainha?

E foi aí que me dei conta, de que jamais havia dado a chave de casa para qualquer pessoa. Ele nunca poderia ter em sua posse a chave da porta principal. Senti uma mão macia tocando meu rosto, era Helena. Deus havia ouvido as minhas preces. Era chegada a hora de partir ao lado de minha amada.

Ao deixar a casa, observei que pouca coisa era como antes, eu que nunca havia percebido a mudança. O pároco não esteve ali para me ajudar a ficar e sim para me ajudar a partir. Era eu o fantasma que atormentava os novos moradores daquele sobrado.

 

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Sobre Rodrigo Barros

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Empreendedor e escritor, Rodrigo Barros é bacharel em Biblioteconomia e em Sistemas de Informação, com pós-graduação em Gerência de Projetos e MBA em Gestão de Marketing. Fundador e editor chefe na Cartola Editora.

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