Kindle paperwhite: Prático como você

O abrigo imperfeito

Compartilhe:

Fazia tempo que ele não via uma chuva forte como a daquela noite. Observava pela fresta da janela o pequeno riacho que se formava junto à guia. Um silêncio profundo e incomum, comparado aos últimos meses. Lembrou-se da infância, quando debaixo das cobertas observava timidamente os raios que iluminavam o quarto.

O medo desnecessário que ele sentia quando criança, não se comparava ao temor dos últimos tempos. Dificilmente um raio poderia lhe tirar a vida, pelo menos, não deitado em sua cama. E claro, sempre havia seu pai para protegê-lo ou um abraço afetuoso de sua mãe para lhe acalentar nas noites frias. Agora era diferente, não havia mais ninguém, só o silêncio e a espera por um fim que mais cedo ou mais tarde chegaria.

Quando começaram os boatos e as notícias sobre a epidemia, ele deu pouca importância. Para ele era um novo tipo de ebola ou algo do gênero, jamais imaginou que chegaria tão próximo. Em poucos dias o mundo estava infestado, não houve tempo para nada, todos observavam um a um caindo perante o vírus e só lhes restava fugir.

Roberto nunca foi um fã de armas de fogo e jamais pensou em ter porte. Para falar a verdade, nem mesmo um estilingue quando moleque lhe enchia os olhos.  Foi uma criança livre, vivia pelas ruas, mas era outra época, onde todos conviviam com menos violência. Jogava bola de gude, brincava de pique esconde e não fazia mal a uma mosca. Não tinha por hábito sequer brigar com os meninos da rua debaixo. Sempre foi da turma do “deixa disso” e agora estava ali, acuado, precisando lutar para sobreviver. Se ao menos tivesse companhia, poderia pensar em uma estratégia para conseguir sair vivo daquele porão.

Ainda que houvesse bateria em seu celular, não poderia saber se algum de seus conhecidos sobreviveu à epidemia.  E mesmo assim, quem seria louco de cruzar a cidade para lhe ajudar? Roberto não sabia nem o nome da rua em que estava, ou quem eram os donos daquela casa. Foi o primeiro lugar em que conseguiu se enfiar enquanto observava a população enlouquecendo. No início era apenas um homem se debatendo e atacando outras pessoas, em poucas horas, toda a cidade estava alucinada, tentando devorar uns aos outros. Os que sobreviviam ao ataque acabavam por se tornar mais um doente faminto, tentando atacar vizinhos, crianças ou qualquer outra coisa viva que passasse por perto.

Ele tinha medo, preso naquele porão há mais de duas semanas. Já não tinha mais água e nem comida. Acabaria morrendo de qualquer forma se não conseguisse sair dali. Mas como fazê-lo? A casa estava tomada, as ruas estavam tomadas. A tempestade o fez esquecer-se dos problemas por algumas horas, já que os que rastejam pela noite pareciam se esconder da chuva. Fazia certo tempo que eles não tentavam adentrar ao porão. Não teriam forças para isso, mas os grunhidos e os arranhões transformavam cada minuto em uma insuportável eternidade.

Roberto acreditava que nunca mais veria dias como os de antes. Crianças brincando pelos parques e a correria das grandes cidades. As últimas notícias que chegaram até ele falavam que a epidemia assolava todo o planeta. Seria o apocalipse? Uma maneira que Deus encontrou de exterminar de uma vez por toda a raça humana? Ele tinha muito mais perguntas do que respostas.

Permaneceu quieto, não acendia as luzes, já que isso chamaria atenção, mas havia eletricidade na casa, ele sabia disso, pena não haver um carregador. Será que ainda havia como acessar a Internet? Era possível que sim, um ponto ou outro ainda deveria trafegar alguma coisa, não acreditava que toda a humanidade estivesse se escondendo embaixo da cama.

Encontrou um rádio antigo entre os objetos que aquela família guardava no porão. Estava meio empoeirado, mas parecia em bom estado. Ligou-o à tomada, não encontrou uma estação ativa no dial. A sua esperança sobre ter internet foi por água abaixo, se não havia transmissão de rádio ativa, não haveria conexão alguma. Mudou para o sinal AM na tentativa de ouvir algo, mas também não obteve sucesso, ainda que estivesse funcionando, o rádio tinha a mesma utilidade de um peso de papel.

Guardavam todo tipo de entulho lá embaixo, brinquedos, cartões postais, móveis e ferramentas. Roberto vasculhava as coisas e pensava “Bem que podia ter uma dispensa, não é?”. A esperança de que alguém pudesse surgir e lhe tirar dali já não existia mais. Não havia o que comer, mas se chovia forte havia água e no momento, um pouco de líquido lhe faria muito bem. Remexendo nos objetos do porão, encontrou um jogo de talheres de prata e copos de vidro, que pareciam aqueles presentes de casamento que ninguém usa e guarda para sempre.

Abriu vagarosamente o basculante que dava pra rua e tomou o máximo de cuidado para verificar se realmente não havia uma ameaça por ali. A chuva ainda estava forte, então, passou os copos pela fresta e assistiu aos poucos a água sendo estocada. Assim que o primeiro copo se encheu, tomou aquela água fresquinha como se fosse Coca-Cola, tamanho prazer que teve. Bebeu mais um copo e voltou a enchê-los, trazendo para dentro toda a água que pudesse guardar.

Voltou sua atenção para os objetos guardados no porão, tinha por objetivo encontrar mais coisas que pudessem lhe servir de alguma forma, principalmente as ferramentas. Roberto precisava de uma arma, de algo que pudesse ferir alguém, era a única chance que teria para escapar, mas não dava para fazer isso com uma chave de fenda, precisava de alguma coisa mais mortal. Sabia que não encontraria uma metralhadora ou uma granada, mas uma faca para passar manteiga pouco lhe ajudaria a enfrentar toda aquela gente que circulava no andar de cima.

Com o passar da madrugada, passou a ouvi-los mais vezes, andando lentamente para lá e para cá. Não tentaram abrir a porta como de costume, mas estavam ali à espreita, como se esperassem o momento exato para atacá-lo. Ele precisava sair dali, encontrar humanos que não foram infectados. O ser humano é adaptável, se ele pudesse encontrar outras pessoas teria uma chance. Roberto tinha certeza de que em algum lugar havia gente tentando sobreviver e reerguer a humanidade após o caos.

Encontrou uma furadeira que funcionava também à bateria e pensou que um objeto daquele porte poderia fazer um estrago. Colocou-o na tomada para carregar e ficou analisando as brocas. A mais grossa poderia sim ferir mortalmente uma pessoa. Não daria para enfrentar uma multidão, mas alguns seres lentos e quase mortos, ele poderia encarar. Não havia como ter noção do horário, mas em cinco ou quatro horas o dia amanheceria. Roberto precisava encontrar uma solução para fugir dali enquanto estava escuro, não poderia passar mais um dia sem se alimentar. A bateria demoraria umas duas horas para recarregar, tempo suficiente para descansar e recuperar as forças a tempo de colocar em prática seu plano de fuga.

Roberto acordou assustado e com receio de que o sol já tivesse raiado, mas por sorte ainda teria mais uma hora e a bateria da furadeira parecia estar completamente carregada. Era chegada a hora, ou morria enfrentando seu pior pesadelo, ou acabaria por morrer de fome preso naquele porão. Encostou o ouvido à porta e só havia o silêncio, era bem provável que ele conseguisse chegar até a sala, encontrando uns dois ou três daqueles seres. Olhou mais uma vez pelo basculante e não havia nenhum deles pela rua.

Colocou a broca na furadeira e iniciou a máquina para testar se tudo estava a contento. Se para sua sorte a ferramenta funcionava normalmente, para seu azar o barulho daquele aparelho velho era altíssimo e no silêncio da madrugada tornou-se avassalador. Em pouco tempo, todos os zumbis que perambulavam pela casa estavam forçando a porta para tentar adentrar ao porão.  A situação atrapalhou sua rota de fuga, já que seria impossível passar por eles agora.

Roberto sentou-se próximo à janela e tentou imaginar alguma outra maneira de sair dali. Precisava de ajuda, mas sabia que não a teria. Percebeu que apesar do sofá velho segurar bem os zumbis do lado de fora, a madeira já antiga da porta estava aos poucos cedendo. Em instantes, avistou os primeiros dedos forçando as frestas na tentativa de invadir o porão. Era evidente, não demoraria muito e teria de lutar sozinho contra aquela legião de esfomeados. Sem muito tempo para pensar, era preciso retardar a entrada deles. Roberto foi até a estante e a derrubou em frente à porta, entulhando em seguida tudo que podia para impedir o avanço daquelas pessoas.

A medida lhe deu um pouco mais de tempo para pensar, mas era algo paliativo, não duraria a noite inteira. Encontrou um extintor enferrujado, que nem deveria funcionar mais, contudo, era o suficiente pra ser utilizado para quebrar coisas, incluindo crânios. Voltou a olhar o basculante do porão e viu que sem as grades que separavam os vidros, seria possível passar por ali, mas precisaria ser rápido e silencioso, ficar preso e ainda chamando atenção não seria muito inteligente.

Roberto forçou as grades com as mãos para checar se havia muita resistência no material, afinal, tratava-se de uma casa antiga. Como imaginou, começaram a surgir às primeiras rachaduras. Ainda que preferisse o silêncio, não teria como derrubar aquela pequena janela com as mãos limpas, pegou o extintor e começou a bater fortemente, quebrando todos os vidros, num primeiro momento e, aos poucos rachando a parede. Apesar do barulho, nenhum ser sombrio apareceu do lado de fora, ele estava com sorte. Parou por alguns instantes para limpar o suor que escorria pela testa e beber um pouco de água, antes de recomeçar a forçar o basculante.

O silêncio momentâneo o fez perceber um barulho vindo de suas costas. Um zumbi de corpo esguio conseguiu passar entre a pequena abertura da porta e à estante que aos poucos ia cedendo, dando espaço para que outros pudessem seguir o mesmo caminho. Roberto não teve dúvidas, pegou o extintor com ambas as mãos e acertou a cabeça do zumbi com violência, espalhando miolos por todos os lados. Levantou rapidamente o sofá e colocou-o ali, aumentando a resistência por mais um tempo.

Voltou sua atenção à janela, tentando derrubá-la a todo custo. Proferiu diversos golpes e percebia que a cada nova agressão, o ferro ia se desgrudando da parede, ameaçando tombar. Precisava de mais tempo e de mais forças, pois àquela altura, com tanto esforço, sua energia ia se esvaindo, mas o medo o mantinha focado em seu objetivo. Pegou a furadeira e a colocou dentro da calça, como se fosse um revolver na cintura. Com uma chave de fenda e um martelo passou a atacar as rachaduras da parede, soltando assim a parte direita do basculante.

Não havia mais o que fazer. Aquela era a sua única saída. Passou a forçar agora o outro lado, mas esse parecia mais resistente, a parede sequer rachava diante de suas investidas. Olhou para trás e viu que a cada segundo todo o entulho cedia centímetro após centímetro. Em pouco tempo, o porão estaria tomado.  Pegou novamente o extintor e voltou a golpear a grade, que se não desgrudava da parede, ao menos ia sendo entortada até liberar todo o espaço. Não seria uma passagem simples, mas agora se tornara possível se arrastar pelo vão e alcançar à calçada.

O único problema era que a janela que dava para a rua era colada ao teto, Roberto precisava de algo para que pudesse chegar até aquela altura e se esgueirar para alcançar a liberdade. Dentro do porão, tirando a estante, a única coisa que daria alcance à janela era o sofá e, este estava sendo utilizado para retardar o progresso dos zumbis. Se retirasse o sofá e tentasse subir nele para sair pela janela, correria o risco de ser pego no caminho. Se não o fizesse, não teria como alcançar a saída. Ele estava em uma “sinuca de bico”, teria de ser ainda mais rápido e se preparar para o pior.

Olhou a sua volta e não tinha nada para colocar no lugar do sofá e impedir a entrada dos zumbis. Pegou o extintor e passou a bater contra a estante de metal, fazendo barulho e com isso recuando alguns passos aquela multidão de famintos. O som vibrante do metal fazia com que eles se sentissem incomodados, pareciam perturbados com aquilo, quanto mais ele batia, mais sem rumo eles ficavam.

Roberto largou o extintor no chão e começou a arrastar o sofá para junto da parede. Olhou para trás e viu que eles voltaram a forçar a porta. Não tinha mais jeito, eles entrariam a qualquer instante. Subiu no sofá e se apoiou na janela, sem se importar com os cacos de vidro perfurando a palma de suas mãos, depois pensaria nisso, era chagada a hora de sair dali. O tronco já chegava à metade da janela quando sentiu seu corpo ser puxado para dentro do porão, olhou para trás e viu três zumbis tentando abocanhar a batata da perna.

Chutou com força a cabeça do que estava mais próximo e o viu caindo sentado ao chão, não se preocupou com um deles, que ainda tentava agarrar sua calça, mas não conseguia se livrar do terceiro, que era o mais forte fisicamente e agarrado em sua coxa o impedia de sair. O zumbi acabaria por conseguir cravar os dentes em sua perna e se isso acontecesse não haveria mais porque lutar, pois mesmo que conseguisse se livrar, teria o mesmo fim daquelas pessoas, rastejando atrás de outros seres vivos.

Lá com o peito todo cortado pelos cacos de vidro que roçavam contra a pele, Roberto se lembrou da furadeira presa em sua cintura. Alcançou a ferramenta e segurando forte para que esta não caísse, apertou o botão seguidas vezes como se afiasse a arma que utilizaria em seguida. O Zumbi titubeou por um instante, devido ao barulho da máquina, e não percebeu quando Roberto investiu com a furadeira em sua direção. A broca perfurou com violência seu olho esquerdo atravessando o crânio do Zumbi, que imediatamente o soltou, tombando morto no chão daquele velho local.

Roberto conseguiu passar o resto do corpo pela janela e enxergou do lado de fora todo o porão ser tomado por zumbis, que atabalhoados o viam desaparecer diante de seus olhos. Era chegada a hora de iniciar um novo caminho, agora solitário, em um mundo cheio de perigos.

Compartilhe:

Sobre Rodrigo Barros

Avatar photo
Empreendedor e escritor, Rodrigo Barros é bacharel em Biblioteconomia e em Sistemas de Informação, com pós-graduação em Gerência de Projetos e MBA em Gestão de Marketing. Fundador e editor chefe na Cartola Editora.

Veja também

O plano perfeito

Tudo havia sido minuciosamente calculado e nada poderia dar errado. O velho homem sabia que …

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

catorze − 2 =

*

Web Analytics