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O massacre

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A grande verdade é que a comunidade definhava há anos. Os que não morriam de fome quando pequenos e chegavam à adolescência, acabavam assassinados em disputas de terra ou sucumbiam diante da depressão. Isolados, ignorados pelo resto do País, era assim que os sobreviventes da tribo Guarani Kaiowá tentavam, sem muito sucesso, manter seus valores e cultura. Vencidos pelo alcoolismo, violência, escassez de comida e saneamento básico, os indígenas receberam mais um golpe, desta vez em definitivo.

Após longas batalhas nos tribunais, a justiça brasileira concedeu quatro liminares forçando a comunidade a se retirar do local, para que a área fosse destinada ao plantio de soja. Cansados de serem tratados como páreas em nossa sociedade, os Kaiowás decidiram ir à guerra em um último ato de sobrevivência. Recusaram-se a deixar Tekoha, a terra natal. Kaluanã convocou todos os que demonstravam alguma liderança para uma assembleia, onde decidiriam o futuro da aldeia, Chamou o jovem Naara, e pediu-lhe que avisasse a todos da reunião, solicitando ao velho Magé que viesse a sua oca para receber instruções sobre o que fazer nos tempos difíceis que estavam por vir.

Magé iniciou um ritual de rezas que duraria uma semana e representava a despedida da vida terrena, indicando que todos os adultos da tribo estavam dispostos a lutar e só deixar a batalha, vencedores ou mortos. Naara temia pelo pior, sabia que não havia poderio bélico para enfrentar nem a justiça, nem os latifundiários. O futuro poderia ser a extinção de sua tribo. Se o jovem guerreiro temia por sua vida, Kaluanã já não mais se preocupava. Via seus entes sucumbindo dia após dia e preferia morrer lutando por dignidade a assistir os filhos minguando, aguardando pelo fim. Ficou definido que crianças, mulheres e os mais idosos deixariam a aldeia rumo a Brasília, com o intuito de protestar pela expulsão de suas terras, enquanto os mais jovens ficariam para lutar até o último minuto contra a desocupação. Em três dias iniciariam o esvaziamento da aldeia, para proteger os menos resistentes, enquanto os jovens descansariam e montariam estratégias de batalha contra quem viesse para tirá-los de suas terras.

Na madrugada de quinta pra sexta, a lua estava cheia e brilhava no céu de estrelas, sem nenhuma nuvem para atrapalhar sua exibição. O silêncio reinava na tribo. Todos descansavam quando Naara percebeu uma estranha movimentação entre as ocas, sentiu cheiro de fumaça e levantou assustado. Labaredas queimavam todo o entorno da aldeia, e via, ao longe, homens com facões e armas jogando gasolina nas cabanas. O jovem correu até a oca de Kaluanã e alertou para o que estava acontecendo. O cacique pegou um arpão e saíram em surdina acordando os outros guerreiros. Enquanto os roceiros ateavam fogo no que viam, foram surpreendidos pelo ataque dos índios que sem nenhum tipo de piedade derrubaram um a um, sem deixar uma única testemunha sequer. Todos foram sumariamente degolados. Kaluanã orientou que cada membro tentasse conter o fogo que já se espalhava e queimava algumas cabanas. Mães corriam desesperadas com os filhos no colo, tentando evitar o pior. Devido à seca, o trabalho era árduo para os poucos índios que se mobilizavam tentando conter as labaredas.

Enquanto os mais fortes tentavam salvar a comunidade, cerca de quarenta latifundiários armados invadiram a aldeia para dar fim aos que atrapalhavam seus planos. Eram muitas armas de fogo e muitos homens, não teria como resistir àquilo. Assim que avistou os carros chegando, Naara pegou o arco e flecha e acertou em cheio o peito daquele que bradava ordem. O ataque chamou a atenção dos outros que se dividiram entre tentar salvar o patrão e disseminar o terror pela aldeia. Enquanto as mulheres fugiam para a mata com seus curumins, os assassinos acertavam-lhes a cabeça com coronhadas e com o facão, isso quando não atiravam de longe as vendo cair pelo chão. Não havia sinal de piedade, idosos, crianças e mulheres estavam todos sendo assassinados.

Os guerreiros Kaiowás deixaram o fogo de lado para tentar evitar o massacre, em meio ao tiroteio, muitos arpões e flechas sendo lançados em direção aos latifundiários, alguns até caiam, mas eram poucos. Magé tentava guiar a fuga dos mais frágeis para o meio da mata, enquanto Naara se juntava a Kaluanã na guerra contra os roceiros. A terra que antes servia para alimentar os Kaiowás, agora estava banhada de sangue, horror e sofrimento. Não havia nada que pudesse parar a batalha naquele instante, longe da cidade e sem policiamento. Os guerreiros caíam por todos os lugares e não resistiriam por muito tempo.

Kaluanã ordenou que Naara deixasse a batalha e ajudasse a salvar os bebês e as crianças, pois os Kaiowás não poderiam ter seu fim naquela noite. Ainda que contrariado, o jovem guerreiro se juntou a Magé para tentar salvar os que ainda se mantinham vivos em meio ao mar de sangue. O velho pajé pediu ao jovem guerreiro que seguisse a liderança pela mata, pois tentaria conter o avanço dos latifundiários. Assim que Naara se embrenhou pelo matagal, um disparo certeiro atingiu a cabeça de Magé, dando fim ao líder da magia e da religiosidade dos Kaiowás. Em meio a tanto martírio, Naara chorou pela primeira vez. Desde que seu pai havia sido assassinado em uma briga de bar na cidade, ele havia sido criado pelo velho feiticeiro.

A maioria dos guerreiros já havia sucumbido enquanto Kaluanã seguia guiando os que se mantinham de pé na luta em defesa de sua terra. O fogo lambia as ocas que restavam e tudo na aldeia estava destruído. Não havia mais aquela comunidade que durante séculos prosperou ali. Eles resistiram ao máximo para facilitar a fuga dos indefesos, mas não havia mais como lutar. Kaluanã ajoelhou-se sobre a mãe terra e pediu para que Tupã o levasse em paz, e que protegesse os seus meninos que seguiriam uma longa estrada para poder lutar por suas vidas. A dignidade havia sido tomada. O guerreiro assistiu à morte de todos os seus comandados antes de ser alvejado e desabar junto a sua aldeia. Era o fim de tudo que ele ainda acreditava.

Ao amanhecer, a polícia chegou ao local. Os corpos de todos os latifundiários haviam sido levados para impedir que os responsáveis pelo massacre fossem identificados. Por toda a parte se via os corpos dos índios estirados ao chão, muito sangue e fuligem, com os restos do que fora queimado e dizimado. Ainda que pudessem ser identificados, os mandantes do massacre, a polícia e o governo local pouco fizeram para prendê-los. Coronéis mandavam na cidade, tudo estava muito bem amarrado e os índios eram um estorvo para todos. Não se deram sequer ao trabalho de recolher e enterrar os corpos dos guerreiros assassinados. Retornaram para a delegacia sem registrar um boletim de ocorrência.

Ao entardecer, Naara retornou sozinho à aldeia. Havia salvado alguns poucos índios e ainda precisava finalizar o trabalho do Magé, rezando por todos aqueles que partiram. Com os cordões que o velho pajé usava, vestiu o cocar de Kaluanã e enterrou um a um os corpos que encontrava pelo caminho. Era preciso ser forte, levar aos mais jovens a cultura que aprendeu, e liderá-los para lutar novamente por sua terra um dia. Ele sabia que o desafio não seria fácil, mas seria o único caminho. Após enterrar cada um de seus irmãos, fincou uma cruz sobre os túmulos para que todo homem branco soubesse que ali havia um cemitério, um santuário relembrando o massacre dos Kaiowás, que ainda ecoaria por ali. Eles agora eram poucos, mas o silêncio não reinaria assim tão fácil.

Leia: O massacre – Parte 2 e O massacre – Parte final

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Sobre Rodrigo Barros

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Empreendedor e escritor, Rodrigo Barros é bacharel em Biblioteconomia e em Sistemas de Informação, com pós-graduação em Gerência de Projetos e MBA em Gestão de Marketing. Fundador e editor chefe na Cartola Editora.

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